Entrevista exclusiva com Hector Abad Faciolince, convidade da FLIP 2010
“Ya somos el olvido que seremos...” O verso de Jorge Luís Borges foi encontrado no bolso do médico sanitarista colombiano Hector Abad Goméz (1921-1987) por seu próprio filho, o jornalista e escritor Hector Abad Filho, logo após seu assassinato por paramilitares contrários a sua defesa apaixonada dos direitos humanos. Vinte anos depois, impelido pela necessidade de contar a história desse ‘pai herói’, Hector Abad Faciolince dominou o sofrimento interno para escrever um livro ao mesmo tempo duro, afetuoso e, por incrível que pareça, bem humorado, descrito por Mario Vargas Llosa da seguinte forma: “Um espantoso mergulho no inferno da violência política colombiana, na vida e na alma da cidade de Medellín, nos ritos, insignificâncias, intimidades e grandezas de uma família, um testemunho delicado e sutil do amor filial. É uma história real, mas ao mesmo tempo uma magnífica ficção, pela maneira como está escrita e construída.”
Abaixo, entrevista exclusiva concedida pelo autor, que participa da FLIP domingo, dia 10 de julho, às 14h30, na Tenda dos Autores, junto com a escritora também colombiana Laura Restrepo. Ao final da apresentação, ele autografa A ausência que seremos, que acaba de ser lançado no Brasil pela Companhia das Letras.
É a sua primeira vez no Brasil? O que conhece do nosso país? Quais escritores brasileiros teve oportunidade de ler?
A rigor, não é a primeira vez: pisei no Brasil em um povoado de fronteira (esquina de Brasil, Colômbia e Peru) chamado Tabatinga. Conhecem Tabatinga? Está ao lado de um povoado colombiano de nome alegre: Leticia. Sou muito ignorante sobre seu país, mas amo todas as coisas que conheço do Brasil: as incríveis Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, talvez o primeiro romance verdadeiramente moderno de toda América. Amo todas crônicas, inteligentes e comovedoras, de Clarice Lispector, que foram uma inspiração para o meu trabalho como jornalista. Tive o gosto de ler alguns romances de Rubem Fonseca, e de jantar com ele e com García Marquez em Guadalajara (México) há alguns anos: parecia um monge budista. Também li o “sertão” de Guimarães Rosa e muitos romances de Jorge Amado, em meus anos de formação, ao redor dos 20 anos; eram doces e alegres. Quando menino, lia com muito deleite os livros de Monteiro Lobato que meu pai ia me apresentando, um a um... Também já escrevi um longo ensaio explicando porque os livros de Paulo Coelho me parecem tão ruins, e porque, mesmo assim, ele segue tendo êxito. Não conheço a literatura brasileira contemporânea, estamos tão perto e tão longe ao mesmo tempo... Minha filha é fanática por Bossa Nova, mas antes disso eu já amava Vinicius de Moraes, Chico Buarque, e a melodia de Romaria cantada por Elis Regina. Espero voltar para casa carregado de livros de jovens poetas e escritores brasileiros.
É verdade que levou 20 anos escrevendo A ausência que seremos? Quando e por que decidiu começar este livro? Em quais momentos interrompeu a escrita?
Durante 20 anos sabia que algum dia teria que escrever um livro contando a vida e a morte do meu pai. Mas durante muito tempo quis esquecer esse assunto, viver outras coisas, pois não podia conviver com a recordação permanente de algo tão doloroso. Nesse meio tempo, aprendi ofício de escritor e escrevi outros livros: romances, ensaios, coisas sérias e também frivolidades. Quando meu cabelo começou a ficar branco e vi que não era imortal (os jovens se crêem, felizmente, imortais), me dei conta de que podia morrer sem haver contado a coisa mais bonita e também a mais dolorida que havia ocorrido em minha vida: a relação com meu pai. Então, me forcei a contá-la. Era muito difícil, quando comecei a escrever, e muitas vezes tinha que parar para gritar e chorar. Abandonei o projeto muitas vezes porque me parecia um livro sentimental e cheio de lágrimas. Quando, por fim, pude exercer uma escrita mais seca, mais distaciada, senti que podia terminar. Com essa escrita mais controlada, pude contar sua vida e seu infame assassinato do ponto de vista do menino que fui, do jovem que fui – um testemunho apaixonado da vida valiosa do meu pai.
É uma tendência dos escritores iniciantes escrever histórias baseadas em sua própria experiência, em sua própria vida. Mas a maioria dos textos resulta em algo de interesse limitado. Você escreveu um texto baseado em sua própria experiência, mas resultou em um livro de alta qualidade literária. Qual é o caminho para aproveitar as experiências próprias e transformá-las em literatura, em vez de um simples relato confessional?
Eu diria que todas as vidas se parecem muito, e em geral a própria vida não é muito interessante. A todo mundo se passam mais ou menos as mesmas coisas: amar, trair, ser traído, triunfar, fracassar, subir, descer. Mas às vezes há fatos insólitos na própria vida ou na vida das pessoas em volta, que não podemos deixar de contar. Se a violência bate à porta da sua casa e acontece algo terrível, e ademais você é escritor, cedo ou tarde terá que contar essa história. Eu tive a sorte de que meu pai viveu sua vida de um modo muito estético, como um poeta romântico. Contar sua vida, simplesmente, já deu um romance. Mas eu não gostaria, nunca, de reviver as coisas terríveis que se passaram dentro de mim para escrever outro livro tão pessoal. Prefiro inventar ou partir de algum fato real para inventar. Este é um livro sui generis porque é real, mas parece inventado. E um livro único, porque foi motivado por uma tragédia. O caminho que encontrei para contar essa história foi o mais simples, e o que me ensinou Natalia Ginzburg com seu Léxico familiar*: contá-la toda com a linguagem mais simples possível, de um modo quase linear, sem alterar nada, nem sequer os nomes. Cada livro exige seu próprio estilo e não existe uma receita válida para todos.
* Publicado no Brasil pela CosacNaify.
No livro Tratado de culinaria para mujeres tristes (ainda sem data para sair no Brasil), você parece conhecer profundamente as dores e alegrias da alma feminina. Até que ponto ser o único filho entre cinco irmãs lhe permitiu o acesso a esses mistérios?
Não há experiência literária comparável a ter cinco irmãs mulheres: as mulheres falam mais rápido e melhor que os homens, contam com mais graça e mais detalhes as histórias. Eu não podia nunca competir com minhas irmãs em seus contos orais maravilhosos: tive que aprender a escrever para poder imitar os relatos delas, pois o meu modo de expressão não era suficiente para competir com elas. É claro que desde menino eu as observava muito, em silêncio. Sempre o que se pensa é que um menino rodeado de mulheres pode se tornar gay; esse era o temor dos meus avós e dos meus tios. Não me tornei gay mas, sim, gravei em meu cérebro uma forma de ver o mundo que inclui intensamente o ponto de vista feminino. Sou um homem comum, mas consigo enxergar o mundo através dos olhos e dos sentimentos das mulheres, muitas vezes. Agrada-me essa espécie de ‘travestismo’ mental.
Como está Colômbia hoje? O que diria a um turista para convencê-lo a visitar seu país?
Eu amo os viajantes, mas não os turistas. A mim, me disseram que Brasil e Colômbia se parecem: selvas, grandes cidades, música, Carnaval, alegria. Também pobreza, desigualdade, grandes fortunas ao lado da miséria. Nossa tragédia foi, além de tudo, a questão das drogas, que financiaram tanto a guerrilha quanto os paramilitares, não apenas os narcotraficantes. Essa violência impediu que o país atraísse muitos visitantes. Mas agora minha cidade, Medellín, está muito melhor. Os homicídios se reduziram muitíssimo, de 7.500 para 1.500 ao ano. Também há partes do Brasil que são perigosas. Mas creio que um brasileiro não se sentiria tão estranho na Colômbia. Bem, não sei. Nesta viagem também quero averiguar o quanto nos parecemos. O prato tradicional da minha cidade também é o feijão, mas não preto, e sim vermelho. Com arroz, banana, carne moída, torresmo. Estão convidados.
Por Valéria Martins
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