No início do século XX, o compositor paulista Julio Reis
(1863-1933) luta para brilhar na capital federal e se desespera com as mudanças
na música. Décadas depois, Frederico, filho do maestro, tenta impedir que seu
pai seja esquecido e se dedica, até o fim da vida, a resgatar sua memória e sua
obra. Neste romance, o escritor Fernando Molica, bisneto de Julio Reis, conta
ficcionalmente a história do músico, de seu filho e de um tempo de grandes
transformações. Em entrevista à Shahid, Molica fala sobre o prazer e os
desafios de reproduzir a trajetória deste personagem.
O que você sabia sobre Julio Reis, como bisneto dele, antes de
escrever o livro?
O
conhecimento sobre Julio Reis veio do meu avô Frederico Mário, com quem convivi
muitos anos (quando ele morreu, eu tinha 31 anos). Lá pelo início da minha
adolescência, eu fiquei sabendo que meu bisavô tinha sido compositor de
sinfonias e óperas, achei isso muito legal, interessante. Meu avô dedicou-se
muito à ideia de recuperar a obra do pai, fazê-la voltar a circular, mas
infelizmente não conseguiu. Depois da morte do meu avô, acabei ficando com o
acervo do Julio Reis – partituras manuscritas, recortes de jornais. Durante um
bom tempo não sabia bem o que fazer, até que resolvi escrever um romance
baseado em sua vida.
O Inventário de Julio Reis é uma obra de ficção, porém baseada na trajetória real de
Julio Reis na cidade do Rio de Janeiro. O que é ficção e o é realidade no livro?
É
muito difícil separar ficção e a chamada realidade. Uma mesma realidade ganha
relatos diferentes quando contada por diferentes pessoas. Não inventei títulos
de composições, ele é autor de tudo o que é citado, procurei ser rígido neste
ponto. Mas o acervo deixado pelo Julio Reis é amplo, porém muito, digamos,
duro. Eu tinha ali muito material crítico, reportagens, resenhas, além das
partituras. Faltava dar uma cara, uma personalidade, buscar entender os
desejos, os sonhos, os amores e as frustrações daquele personagem que viveu
numa época de tantas mudanças. Não daria para fazer uma biografia formal, eu
não tinha elementos nem vontade para isso. O que busquei foi interpretar
aqueles papéis, criar uma espécie de variação ou fuga - para usar uma linguagem
musical - em torno das vidas do Julio Reis e de seu filho Frederico.
Como a vida no Rio influenciou a arte de Julio?
O
Rio, então capital federal, vivia um período de muitas mudanças, de
consolidação da República, de profundas alterações urbanísticas. Foi a época de
revoltas populares e militares, de remoção de milhares de pessoas, de
construção das grandes avenidas. Julio Reis era um compositor de
características românticas, apegado à tradição da música europeia. De certa
forma, ele foi atropelado pelas mudanças, pelas modificações na própria música.
Ele não aceitava a modernização empreendida por compositores como Debussy e, um
pouco mais tarde, por Villa-Lobos.
O que você destacaria de sua obra?
Eu
não sou músico, não sei ler partitura. Agora é que estou começando a conhecer
um pouco a obra do Julio Reis. Conheço apenas gravações de uma valsa, Alvorada
das rosas, feita para o flautista Patápio Silva. No lançamento do livro, o
pianista João Bittencourt tocou algumas outras peças - polcas, mazurcas, tangos
brasileiros. E, no dia 20, a Orquestra Sinfônica UniRio executou Vigília
d'armas, uma sinfonia que não era tocada há 89 anos. No próximo dia 3
haverá outro concerto. Lá no meu site – www.fernandomolica.com.br –
eu criei um espaço para o Julio Reis, coloquei dezenas de partituras que podem
ser baixadas.
Por que você acha que a história dele ficou esquecida? O que há
de mais importante neste resgate que você fez?
Ele se dedicou a um tipo de música que não chega a ser muito
popular. Muitos compositores da chamada música clássica ou erudita também
acabaram esquecidos, as orquestras se dedicam mais ao repertório mais
consagrado. Pouco se sabe até mesmo dos compositores brasileiros
contemporâneos. Além disso, Julio Reis remou contra a maré ao se posicionar
contra a modernidade. O resgate é, talvez, uma consequência do livro. Mas,
insisto, o livro é uma obra de ficção que só tem compromisso com a própria
história que é ali contada. O inventário de Julio Reis é um
romance que, por acaso, se baseia na vida de pessoas que existiram, mas ele
deve se sustentar como ficção e não como biografia. O resgate da obra do compositor
é algo que ocorre de forma paralela, tanto que, no meu site, eu coloquei uma
pequena biografia história do Julio Reis, baseada nos documentos que ele
deixou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário